A transformação digital da Administração Pública (AP) constitui um dos maiores desafios do Direito Administrativo no século XXI. Em Portugal, o desenvolvimento do e-Governo e a crescente implementação da Inteligência Artificial (IA) na AP têm promovido uma modernização profunda da gestão e da administração pública, aumentando a eficiência, a qualidade dos serviços e a participação dos cidadãos.
O próprio Código do Procedimento Administrativo (CPA) refere, no seu art.º 61.º, a utilização de meios eletrónicos; no seu art.º 62.º, o Balcão Único Eletrónico; e, ainda, no respetivo art.º 63.º, as comunicações por telefax, telefone ou meios eletrónicos.
Contudo, a digitalização acarreta e implica novos desafios jurídicos (e, consequentemente éticos), entre os quais a garantia da transparência dos processos (entendidos em sentido “físico”, de documentação, seja em papel, seja digital). Levanta também questões referentes à proteção dos dados pessoais e à segurança da informação.
Portugal tem desenvolvido constantemente políticas de e-Governo, destacando-se, recentemente, a Estratégia para a Transformação Digital da Administração Pública (ETDAP) 2021-2026, publicada por intermédio da Resolução de Conselho de Ministros n.º 131/2021, de 10 de setembro, que procura contribuir para uma AP mais digital, com vista a melhorar a prestação dos serviços públicos, tornando a AP mais atenta e capaz de responder às expectativas dos cidadãos e empresas.
A Agência para a Modernização Administrativa (AMA), apoiada num novo modelo de governança do Conselho para o Digital na Administração Pública tem assumido um papel essencial em todas estas matérias, garantindo a interoperabilidade nos sistemas informáticos da AP, mediante uma plataforma de integração, que permite precisamente a integração dos sistemas de informação das entidades aderentes através de uma arquitetura orientada a serviços, abordando as componentes técnica e semântica da interoperabilidade; uma plataforma de pagamentos da AP; e, ainda, um Gateway de SMS da AP.
A título de exemplo, a AMA desempenha um papel fundamental no novo modelo de governança do Conselho para o Digital na Administração Pública (CDAP). O CDAP, criado pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 94/2024, de 25 de julho, é o grupo de trabalho de coordenação da operacionalização das estratégias e planos de ação global para o Digital e tecnologias na Administração Pública, assegurando a eficiência tecnológica e financeira.
De acordo com o Centro de Competências de Inteligência Artificial para a Administração Pública, a AP aplica a IA em áreas tão díspares quanto a Saúde; a Proteção Civil; a Economia, a Governança e a Segurança Social; a Educação; a Gestão Ambiental; a Gestão Municipal; a Segurança e a Justiça; a Regulação e Supervisão.
As iniciativas no tocante à aplicação da IA na AP têm vindo a resultar numa substancial melhoria dos serviços públicos, designadamente através de plataformas digitais integradas, tais como o Portal do Cidadão e a Chave Móvel Digital, que facilitam o acesso e a autenticação seguros.
Paralelamente, o e-Governo contribuiu para a redução da burocracia e para o aumento da transparência, permitindo a consulta e o acompanhamento online de processos administrativos.
Contudo, muito há ainda para fazer, nomeadamente, há que alterar/melhorar alguns pontos, por forma a que tudo se torne mais exequível: Em primeiro lugar, torna-se essencial criar uma legislação mais específica que regule a utilização da IA na Gestão Pública, definindo claramente os limites do seu uso, os direitos dos cidadãos e as responsabilidades da AP. Em segundo lugar, urge zelar reforçar o regime legal do processo administrativo eletrónico. Em terceiro lugar, deve promover-se a garantia dos direitos fundamentais em ambiente digital, isto é, integrar expressamente no Direito Administrativo o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais na esfera digital. Em quarto lugar, é importante a promoção da educação e literacia digital na AP, implementando-se programas de formação contínua para os agentes públicos. Em quinto lugar, deve haver mecanismos de participação e controlo democrático, mediante a criação de canais de participação dos cidadãos. Em sexto e último lugar, é ainda importante a cooperação internacional em matéria digital, bem como a maior harmonização normativa possível nessas mesmas matérias, visando-se apostar na cooperação com outras jurisdições.
Neste seguimento, destaque-se ainda o facto de que a transparência constitui um pilar fundamental no desenvolvimento do Direito Administrativo digital, especialmente face à crescente utilização da IA na AP.
Num contexto em que as decisões administrativas são cada vez mais mediadas por sistemas tecnológicos, garantir que os cidadãos possam compreender os critérios utilizados, aceder à informação relevante e impugnar as decisões tomadas, ao abrigo de legislação específica sobre utilização das novas tecnologias de informação e proteção de dados pessoais é indispensável para assegurar a legitimidade/legalidade dos atos administrativos e reforçar a confiança dos cidadãos na AP.
Sem essa transparência, existe o risco de enfraquecimento de alguns dos princípios democráticos mais essenciais, tais como a responsabilização da AP e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. Por este motivo, o desafio da digitalização da AP não é apenas tecnológico, mas sobretudo jurídico e ético, exigindo a criação de um quadro normativo robusto que imponha a transparência enquanto requisito obrigatório. Este quadro deve garantir a segurança dos dados, a proteção da privacidade e a inclusão digital.
É neste contexto que se torna cada vez mais importante formar profissionais de várias áreas, especializando-os e dotando-os das mais diversas competências digitais, mesmo sendo eles especialistas de outros domínios, com vista à adaptação a toda uma nova forma de trabalhar, em constante evolução.